A aplicação de gelo em lesões agudas é uma prática tão comum que muitas pessoas a consideram uma “regra de ouro” nos primeiros socorros. Afinal, quantas vezes já ouvimos que, ao torcer o tornozelo ou sofrer uma pancada, a primeira coisa a fazer é pegar um saco de gelo? No entanto, será que essa abordagem ainda se sustenta diante das evidências científicas mais recentes? Neste artigo, vamos explorar o uso de gelo em lesões agudas, revisar o que a ciência tem a dizer e entender se ele ainda é a melhor opção ou se há abordagens mais eficazes.

De Onde Vem a Fama do Gelo?
A origem da aplicação de gelo para tratar lesões remonta ao protocolo R.I.C.E. (Rest, Ice, Compression, Elevation), proposto pelo Dr. Gabe Mirkin em 1978. Durante muitos anos, o gelo foi considerado uma ferramenta eficaz para reduzir a inflamação, aliviar a dor e prevenir inchaços. Mas, com a evolução dos estudos sobre inflamação e recuperação muscular, o uso do gelo começou a ser questionado. E sim, até o próprio criador do protocolo R.I.C.E. já disse que o gelo pode não ser a melhor abordagem em muitos casos!
O Que a Ciência Diz Sobre a Aplicação de Gelo?
O uso do gelo nas primeiras horas após uma lesão, especialmente em entorses ou contusões musculares, tem como principal objetivo reduzir o fluxo sanguíneo para a área lesionada. Isso supostamente ajudaria a diminuir o inchaço e aliviar a dor. No entanto, pesquisas mais recentes começaram a questionar os efeitos a longo prazo do gelo na recuperação muscular e articular.
Estudo 1: Um artigo publicado no Journal of Athletic Training (Bleakley et al., 2012) mostrou que o gelo pode ser eficaz no alívio da dor de curto prazo, mas não apresentou benefícios significativos na recuperação funcional de lesões musculoesqueléticas. Ou seja, o gelo pode ajudar a aliviar a dor imediata, mas não acelera a recuperação em si.
Estudo 2: Um estudo de 2015 publicado na Cochrane Database of Systematic Reviews também apontou que, embora o gelo possa ser útil no controle inicial da dor, ele não tem efeito significativo na redução do inchaço ou na aceleração da cura em longo prazo. Este estudo sugere que, ao reduzir a inflamação, o gelo pode, na verdade, atrapalhar o processo natural de recuperação do corpo.
O Processo Inflamatório é o Vilão?
Muitas vezes, pensamos na inflamação como algo negativo e tentamos eliminá-la o mais rápido possível. No entanto, é importante entender que a inflamação é uma resposta natural do corpo a lesões. O processo inflamatório envolve o envio de células de defesa para a área lesionada, que auxiliam na recuperação dos tecidos danificados.
Ao aplicar gelo e interromper esse processo, podemos estar retardando a cura natural do corpo. Uma revisão científica de Nedergaard et al. (2017) publicada na Sports Medicine mostrou que a inflamação controlada é crucial para o processo de cicatrização. Portanto, reduzir a inflamação pode não ser a melhor abordagem para promover a recuperação eficiente do tecido.
Então, Quando Usar Gelo?
Apesar dessas novas descobertas, o gelo ainda tem seu lugar no tratamento de lesões, especialmente nos primeiros momentos após a lesão, para controlar a dor. Se um paciente apresenta dor intensa e inchaço nas primeiras horas, a aplicação de gelo pode ajudar a aliviar o desconforto. No entanto, deve-se ter cuidado ao prolongar o uso do gelo após esse período inicial.
Recomendações práticas:
Após 48 horas: A recomendação mais recente é evitar o uso prolongado de gelo e focar em técnicas que incentivem o movimento, como mobilizações suaves e, eventualmente, o uso de calor para promover a circulação e a recuperação.
Primeiras 48 horas: Use gelo de forma moderada para reduzir a dor. Aplicar por 15-20 minutos a cada 1-2 horas pode ser útil.
Outras Abordagens para o Tratamento de Lesões Agudas
Se o gelo não é a solução mágica que muitos pensavam, o que mais pode ser feito para ajudar na recuperação de lesões agudas? Aqui estão algumas alternativas baseadas em evidências:
- Movimento Controlado: Estudos apontam que iniciar movimentos leves o mais rápido possível após uma lesão, sem forçar a área lesionada, pode acelerar a recuperação. Isso ajuda a manter a circulação e promover a reparação do tecido.Estudo: Um artigo de Hubbard et al. (2004) publicado no Journal of Sports Medicine destacou que o movimento controlado, em vez do repouso absoluto, promove uma recuperação mais rápida e eficiente em lesões musculoesqueléticas.
- Terapias Manuais: Massagens terapêuticas e técnicas de liberação miofascial podem ser úteis para reduzir a tensão muscular e melhorar a circulação, acelerando o processo de recuperação.
- Aplicação de Calor: Após a fase aguda, a aplicação de calor pode ser mais eficaz do que o gelo, já que o calor promove a circulação sanguínea, relaxa os músculos e melhora a amplitude de movimento.
- Fortalecimento Progressivo: A introdução gradual de exercícios de fortalecimento e mobilidade ajuda a prevenir novas lesões e restaura a função normal.
Gelo: Vilão ou Herói?
Com base nas evidências mais recentes, podemos concluir que o gelo não deve ser visto como um “vilão”, mas sim como uma ferramenta com uso limitado. Ele ainda tem seu lugar no controle da dor em lesões agudas, especialmente nas primeiras horas após o trauma, mas seu uso prolongado pode ser prejudicial ao processo de recuperação.
Conclusão: Usar ou Não Usar Gelo?
A resposta não é tão simples quanto um “sim” ou “não”. O gelo pode ser útil, mas com moderação e no momento certo. Para uma recuperação eficaz, o mais importante é seguir uma abordagem multifatorial que inclua movimento precoce, fortalecimento e outras intervenções que promovam a recuperação natural do corpo.
Como fisioterapeuta ou profissional de saúde, é essencial manter-se atualizado com as últimas evidências científicas e adaptar suas práticas para oferecer o melhor cuidado possível aos seus pacientes. E, claro, sempre lembrar que o corpo humano é extremamente inteligente e sabe como se curar – nosso papel é auxiliá-lo no caminho certo.
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